Torna-te a olhar os lírios do campo
“Observai os lírios; eles não fiam, nem tecem. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda sua glória, se vestiu como qualquer um deles. Ora, se Deus veste assim a erva que hoje está no campo e amanhã é lançada no forno, quanto mais tratando-se de vós, homens de pequena fé!” Lucas 12:27,28
Olhai os lírios do campo é um romance de Erico Veríssimo publicado em 1938. Ainda hoje é a obra mais lida do escritor. A história retrara a vida de Eugênio Fontes, um médico que vive pelo “seu desejo pelo conforto, sua ânsia de sucesso, seu afã de conseguir um nome, de ser alguém (…)¹”. Suas escolhas vão enveredando um caminho egoísta e solitário. Eugênio sente um vazio em seu coração e busca preenchê-lo com o que é perecível, com bens materiais, dinheiro, relacionamentos frívolos e prestígio social. De tanto nadar contra a maré do esquecimento, ele afoga-se em si mesmo e perde a própria vida. Ou melhor, o sentido dela.
Em Lucas 9:25, Jesus fala “Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder-se ou destruir a si mesmo?” Depois que Eugênio alcança tudo aquilo que sonhou, encontra-se mais frustrado do que antes. O vazio parece aumentar de tamanho. Ele é consumido pelo desejo de ser alguém, mas torna-se um desconhecido para si e para os que com ele conviviam. Mas não para Olívia, o amor de sua vida, que sempre viu além do seu complexo de inferioridade e de sua busca desenfreada por condecoração. Ela o amou e levou à ele a verdade que liberta. Em suas palavras: “Tens tido crises de consciência, não é mesmo? Pois ainda passarás horas mais amargas e eu chego até a amar o teu sofrimento, porque dele, estou certa, há de nascer o novo Eugênio.²”
No decorrer da narrativa, acompanhamos a transformação de Eugênio. Vemos a substituição de uma existência vazia e egoísta para uma vida dedicada a cuidar do outro. Eugênio passa a enxergar beleza em seus dias, passa a ver sentido nas relações interpessoais saudáveis e descobre a finalidade de seu trabalho. Olívia exerce um papel crucial em seu processo de redenção, ora como referência de perseverança ora como uma consciência crítica e ao mesmo tempo amorosa que o auxilia na busca pelo seu lugar ao sol. Ela usa do Sermão do monte para ministrar na vida de Eugênio. A narrativa não é linear, intercala-se entre histórias e memórias do passado com o presente problemático de Eugênio e seu futuro remido.
Como sabiamente disse C. S. Lewis: “Lendo grande literatura, torno-me mil homens e ainda permaneço eu mesmo.” Que romance fantástico e sensível! Uma história que falou muito ao meu coração! Que leitura enriquecedora! Deus se revela também através de boa literatura (e brasileira!).
Primeiro, o título da obra faz referência ao versículo de Lucas 12:27,28 e Mateus 6:28–30, em que Jesus nos lembra da bondade eterna de Deus, que cuida e sustenta os lírios dos campos e as aves do céu, como não se ocuparia de seus filhos? O problema é que dedicamos nossas vidas à conquistas e realizações vãs, que não geram riquezas no céu. Permitimos que nossos corações, grandes fabricantes de ídolos, substituam um lugar que só pertence ao Senhor. Assim, passamos a dedicar tempo e vontade à coisas fúteis. Acordamos de manhã e logo a mente já é preenchida com uma avalanche de pensamentos salpicados de preocupações e ansiedades.
Acontece que nem nós sabemos do que precisamos. Assim como Eugênio, mergulhamos num mar de inquietações que vão arrancando-nos tempo e vida, preocupando-nos com coisas ínfimas, gerando tesouros terrenos que um dia perecerão. Deus nos chama para entregar à Ele essas preocupações, pois somente Ele sabe do que necessitamos. E nos ensina a gerar riquezas que não desgastam, “tesouro inextinguível nos céus, onde não chega ladrão, nem a traça consome (..)³”.
Jesus mesmo nos dá a chave para que tenhamos o coração preenchido de paz e próposito, mesmo em meio a um mundo que exige de nós alta performance, trabalhos e jornadas excessivas, reconhecimento profissional e tudo aquilo que consome nossa jovialidade. Em Mateus 6:33 Ele diz “Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” Se nosso coração estiver no lugar certo, tudo aquilo de que precisamos, Deus nos atribuirá.
É por isso que preciso me lembrar todos os dias dos lírios dos campos. Me lembrar de que, mesmo eles que não fiam e nem trabalham, mesmo assim o Criador os enche de beleza, graça e cuidado; quem dirá à mim, à nós, que somos feitos à tua imagem e semelhança. Preciso de pessoas que cheguem e me lembrem: Torna-te a olhar os lírios dos campos…
¹ Página 120, 4ª edição, Companhia das Letras
²Página 152, 4ª edição, Companhia das Letras
³Lucas 12:33 Almeida RA
